Um Homem, Deus, uma Dúvida e uma Verdade.
O Vilarejo das Pedras Sagradas
O povo do vilarejo das Pedras Sagradas vivia em completa harmonia com a natureza.
Seus costumes eram baseados em ensinamentos antigos e de natureza religiosa, assistidos e orientados pelos sumos sacerdotes, praticados há inúmeras gerações.
O solo do vilarejo era abastado de pedras maravilhosas, de cores e formatos variados que encantavam a todos, ao passo que pouco favorecia a agricultura, obrigando aquelas pessoas a dependerem de transações comerciais com outras vilas para poderem prover o sustento de suas famílias.
Assim, há muitos anos os sacerdotes consultaram os deuses, pedindo consentimento para comercializar as pedras encontradas, visto que eram as únicas coisas naquele solo que poderiam ter algum valor comercial para poderem adquirir todo o restante que lhes faltava.
Uma condição foi imposta para que a exploração das pedras acontecesse com a aprovação dos deuses: todas as outras pedras movidas do solo que não seriam comercializadas deveriam ser levadas à montanha mais alta para que pudessem ser usadas na construção de templos em honra aos deuses.
Aconteceu assim durante muito tempo, e o trabalho daqueles homens que subiam a montanha carregando pedras em sacos sobre suas costas, era tido como o mais honroso entre todos os trabalhos do vilarejo.
Ao longo do tempo, esse labor era tão respeitado, que os homens que empreendiam esta tarefa eram tratados como quase como nobres naquele povoado.
O Homem Bom
Khalamadeu era um homem muito forte. Tinha esposa e três filhos, e era reconhecido com um dos homens mais tementes a Deus. Destacava-se entre aqueles que levavam os sacos de pedra para o alto da montanha.
Além de trabalhar no transporte das pedras, Khalamadeu também ia até a cidade para comercializar as pedras preciosas, e logo começou a ser visto como uma espécie de homem santo, já que sempre prestava-se a aconselhar todos que lhe procuravam, sempre com palavras belas e rosto sereno.
Sua fé nos deuses parecia inabalável e punha-se a ajudar a todos que pudesse de todas as maneiras possíveis.
Era desapegado de quase todas as coisas materiais, porém sua casa prosperava e aos poucos tornou-se a mais bela do vilarejo, em virtude de presentes que eram sempre oferecidos, embora ele fosse sempre reticente em aceitar
O povo do vilarejo começou a notar as relativas melhorias na vida de Khalamadeu e sua família, mas não o invejavam e sim, o tinham como exemplo das bênçãos concedidas pelos deuses adorados aos homens de bem.
Uma dúvida no Paraíso
Certo dia, entre os Céus e a Terra, os deuses observavam aquele vilarejo tão cheio de fé e boas pessoas.
Palestravam sobre como era perfeita sua criação, quando era notória a paz que gozava um povo que honrava os deuses.
Quando os supremos senhores estavam para recolher-se e desfrutar dos utópicos prazeres do paraíso, um anjo se aproxima do deus ancião dizendo-lhe:
- A fé que os homens têm em ti não é verdadeira meu senhor.
- Explica-te isto que dizes, servo. – Diz o ancião intrigado.
- Veja, senhor nosso pai: é como uma barganha. – Explica o anjo. - Eles fazem conforme tu ditas e tem retribuições divinas; se não, experimentam tormentas em suas vidas.
Incomodado com as indagações daquele anjo de asas negras, argumentou:
- Mas é assim que deve ser a justiça divina...eles tem livre arbítrio e podem escolher. – Explicou o ancião.
Como quem já soubesse antecipadamente o que diria o senhor, o anjo prontamente continuou a falar:
- Mas somente alguns tolos e desgraçados escolherão não louvá-lo, se sempre as providencias forem dessa maneira, meu senhor.
- Tu destes o maior presente a estes “homens”: a capacidade de pensar.
- Não creio que evoluirão tanto, sendo tratados conforme sua justiça divina.
O grande deus, um tanto quanto enfurecido dirige-se ao anjo como quem quisesse que se calasse, e próximas palavras proferidas pareciam tentar impor sua autoridade:
- Tu vês suas asas escuras que ostentas? Isso é porque és o único servo que me questiona. Está perdendo aos poucos tua graça.
- Aliás, nem entendo porque tens esses pensamentos. Diga-me? De onde inspira-se?
O Anjo postou-se ereto fitando o ancião por breve tempo e segue dizendo:
- Passei muito tempo junto aos homens, e pude aprender com eles algo que eles não usam muito pai: O Pensar.
- Ainda pensarei sobre o que farei a teu respeito, escravo. - Disse o senhor ainda atordoado com os argumentos, como quem esperasse finalizar o diálogo.
Por fim, o anjo fala com os olhos para o chão, como quem temesse alguma reação hostil:
- Sabe o que seria verdadeiro, Pai? Se mesmo na tormenta os homens te fossem fiéis; que ainda que caminhem em sombras e pisem em espinhos, te honrem e glorifiquem a ti.
- Que se eventualmente encontrarem-se em meio à tempestade busquem em ti abrigo e que possam te agradecer por enviar a chuva forte, acreditando que sua vontade deve ser feita e aceita de forma absoluta.
E eu digo-te ainda, sou teu filho, não teu escravo.
O anjo retirou-se rapidamente, antes de qualquer palavra de deus.
Algum tempo passou-se no paraíso, porém, tudo aquilo foi dito pelo anjo, tal como erva daninha em um belo jardim, invadia a todo tempo os pensamentos do Rei dos céus.
Incomodou-lhe profundamente alguém lhe questionar.
Incomodou-lhe ainda mais aquilo tudo poder fazer sentido, e como torturava-lhe saber que como criador nunca havia ocorrido uma outra maneira de ver as coisas, de maneira diferente de como havia pensado na criação.
Depois de refletir muito, resolveu levar o assunto junto aos deuses menores em sua hierarquia celestial, mas sua decisão já estava tomada. Iria colocar à prova, a fé de algum homem na terra para poder afirmar sua suprema sabedoria, bem como sua grandeza perante a tudo e a todos que existem entre os céus e terra.
Outra vez o Homem bom
Foi Khalamadeu o por Deus para honrar sua palavra. Era sem dúvida o homem que mais aproximava-se de seguir todas as suas Leis outorgadas nas escrituras.
Já havia definido todas as provações daquele humilde homem bondoso que exalava complacência e calma, e ajudava a todos que podia.
Estava certo de que não deveria intervir de maneira alguma, em como seu escolhido haveria de agir face às intempéries e provações que viriam a acometer-lhe.
Por um momento o grande Deus sentiu-se ansioso, pois em seu paraíso eterno nada que lhe estimula-se tanto interesse acontecia.
A sensação de poder manipular os homens na terra começou a instigar desejos e pensamentos.
Algum tempo se passou no mundo dos homens, e o vilarejo belo e harmonioso continuava sendo um maravilhoso lar para o povo que lá vivia.
Belos templos haviam sido levantados no alto da montanha, mas o trabalho nunca estaria acabado, pois os deuses eram generosos e seriam sempre glorificados com os mais belos monumentos. Pensamento este, compartilhado por todos que tinham como lar aquela vila abençoada.
A Mão Esquerda de Deus
Nos céus, o Rei dos reis, observava Khalamadeu carregar algumas pedras em sacos de couro e em seguida apoiá-los às costas, como faziam há muito tempo, sem utilizar nenhuma força animal ou ferramenta para auxiliar a empreitada, como ditavam os sacerdotes, que acreditavam que tal empenho purificava corpo e alma.
A caminhada já fazia Khalamadeu sentir o corpo fatigado, mas sem descanso continuava, quando era colocada sem que pudesse ver, pelas mãos do próprio Deus, uma pedra a mais em suas costas.
Mais algum tempo, mais algumas pedras faziam pesar mais sua carga, fazendo o homem curva-se e sentir dores em todo o corpo.
Quando chegou ao destino, estava exausto e preocupado, pois nunca sentiu sua tarefa exigir-lhe tanto esforço.
Ao descarregar as pedras, pensou que tinham mais do que lembrava ter colocado, justificando seu cansaço e deixando-o um tanto confuso, porém não refletiu por muito tempo e voltou ao vilarejo.
Em suas próximas caminhadas acontecia sempre o mesmo, e cada vez mais exausto e com dores ficava, o que o levou a pensar, que os anos vividos já o faziam fraco, mais intrigava-lhe o fato de parecer que no topo da montanha sempre havia mais pedras no saco do que havia coletado.
Deus sentia o júbilo em perceber que a fé daquele homem continuava forte, ainda com o sofrimento causado pelo peso das pedras que colocava em seu fardo, cada vez mais em cada caminhada.
Pensou que devia elevar os obstáculos na vida do seu escolhido, para que pudesse realmente saber o quanto era amado e adorado.
No templo do vilarejo, Khalamadeu rezava pedindo mais forças para continuar realizando o trabalho, e pedia também sempre por sua família e demais moradores.
A dor que transforma
Algumas luas se passaram, quando o filho mais novo de Khakamadeu adoeceu. Algo praticamente inexistente na vila; fato que o fez questionar pela primeira vez e por um momento, a bondade divina.
Logo correu à cidade para encontrar algumas ervas, e surpreendeu-se quando pediram uma paga pelo tratamento, pois sempre era recebido e presenteado, e justamente naquele dia nem sua bolsa havia levado, tendo que voltar para casa sem os remédios.
Conseguiu alguma gordura de porco para levar ao filho enfermo e planejava voltaria no dia seguinte à cidade parar comprar as ervas de tratamento para seu menino.
Após algum tempo o filho continuava adoecido, mas era tempo de levar pedras, e não desapontaria os deuses. Pensou que talvez estivesse sendo punido por curvar-se com o peso das pedras e assim foi pela montanha procurando ignorar o sofrimento da caminhada, antes tão prazeroso.
No caminho de volta, uma tempestade terrível o acometeu, fazendo com que demorasse mais em seu regresso.
Pensando no filho, resolver correr e tropeçou em uma raiz que nunca antes havia visto, e teve ferimentos graves na perna que praticamente o impediram de andar.
Rezou enquanto praticamente se arrastava, levando o dobro do tempo de costume, com dores terríveis, fome e angústia, mas não parava de rezar e pedir ajuda.
Ao chegar em casa deparou-se com a piora do filho, que parecia estar à beira da morte.
Precisava de um curandeiro da cidade, mas não conseguia mais andar.
Sua esposa pediu ajuda de casa em casa, e assustou-se ao ter a porta fechada em todas elas, ouvindo as pessoas lhe dizerem que não ajudariam os abastados do vilarejo, que deviam estar roubando e por isso sendo castigados com a pestilência que arrebatava sua família.
De súbito a mulher de Khalamadeu resolveu ir junto com o filho mais velho, porém ainda bem menino, até a cidade.
Partiu correndo em desespero.
Khalamadeu chorava, e já não rezava tanto quanto questionava tudo o que estava acontecendo.
No caminho para a cidade, a esposa de Khalamadeu foi surpreendida por três homens de aparência rude e mal vestidos, cheirando à podridão.
Mesmo implorando, foi brutalmente violentada pelos homens e assistiu seu filho ser espancado quando reagiu em tentativa de defender a mãe.
Ela não conseguiria andar se não fosse pela necessidade de buscar o curandeiro e seguiu chorando com o filho mais velho cambaleando ao seu lado.
Quando tomou conhecimento do ocorrido, ainda atordoado com a preocupação com aquele seu filho que mal respirava, Khalamadeu realmente começou a sentir as tormentas terríveis às quais fora destinado pelas mãos do mesmo deus que outrora lhe era tão generoso.
O filho enfermo falecera, a despeito de todos os esforços e sacrifícios, e o homem questionou Deus pela segunda vez.
O trabalho das pedras não foi feito por ele durante algum tempo.
Mais dor, e a queda do homem bom
A família do pobre homem sofria agora o desprezo da aldeia e privações de toda sorte, posto que as seqüelas na perna de Khalamadeu o deixaram convalescido por longo tempo.
No peito do nobre escolhido um sentimento terrível desconhecido até então, que crescia cada vez mais.
Já não conseguia facilmente o alimento antes farto. Nem cuidava mais de suas vestes, nem de sua aparência, e seus olhos já perdiam aos poucos o brilho.
Seu rosto não era mais sereno, e seus pensamentos não eram mais repletos de certezas e sim, de dúvidas.
As dúvidas tomaram quase todo seu ser, e como não havia respostas, aquele homem cruelmente punido, fora preenchido de vazio sentiu-se e assombrado por fantasmas que exigiam repostas.
Às vezes rezava, mas suas palavras se perdiam em pensamentos que poderiam resumir-se em: Pai, por que não me ouve? Por que ignora-me? Por que abandou-me? Tu existes?
Suas preces não eram mais puras, e sim tentativas de barganha com os adorados deuses, com promessas em troca de uma vida menos sofrida, e suas orações quase sempre eram palavras de ódio proferidas aos céus, mais densas e odiosas a cada dor sentida em sua vida.
O homem (mau)
Quem procurava Khalamadeu a partir de então, não ouvia belas palavras, e sim gritos. Suas costas não carregavam pedras e sim objetos que não eram seus. E suas mãos não estavam mais abertas e dispostas a acarinhar, e sim ocupadas carregando um punhal.
Agora não era mais homem santo, e sim um temido bandido e mercenário.
A dor não o assustava, nem medo tinha, e nunca mais chorou.
Nunca mais sorriu.
Por vezes jurou ter visto um anjo por perto, mas não era belo e reluzente como diziam e não eram brancas as asas como havia aprendido, mas mesmo com tantas dúvidas, sentia-se mais seguro quando avistava aquela angustiante presença.
Sua efêmera paz encontrava-se no caos e não na harmonia antes vivenciada, que parecia agora uma mentira tão verdadeira, e que dele foi tirada cruelmente a partir do momento que pedras fraquejaram suas pernas pela primeira vez.
Deus e sua coleção de homems
Deus do céu, por tempo estava tomado por um frenesi observando Khalamadeu por tantos anos, que apenas após ouvir aquele escolhido questionando sua própria existência e bondade, deu-se conta de que realmente aquele anjo que incitou-lhe a provar sua criação estava certo, e de seus olhos caíam lagrimas que lavaram a Terra por luas e luas seguidas
Decidiu descer do trono pela primeira vez em muito tempo e com certa esperança de que sua obra não era falha, foi procurar Khalamadeu para que pudesse ouvir daquele homem o que tinha no âmago de sua alma em cada tormenta que encontrou no caminho.
A verdade
- Ei homem, tu deves estar amaldiçoado para encontrar-me agora. - Disse Khalamadeu
- Estou falando contigo velho! Dá-me tudo que tens contigo ou tiro-te a vida, e te enterro sob pedras, como faço àqueles que resistem ou reagem à minha investida.
Um velho homem virou-se e uma luz parecia envolver todo seu corpo. Seu rosto brilhava intensa e estranhamente.
Khalamadeu não disse mais nada por um tempo e aquele homem começou a falar calmamente:
Filho, ouve-me com atenção.
- Eu o tive sob meus olhos por toda sua vida e antes dela.
- Sou Deus, teu pai e teu criador.
- Tu foste meu escolhido para provar a fé dos homens em mim, porque tu foste em toda tua vida e em todos teus passos, bondoso e complacente de alma e coração.
- Mas entristeceu-me, quando ao experimentar as dores do mundo, tu perdeste a fé e prestou-se a praguejar aos céus, quando eu esperava que tu confiasses em mim, e resignasse entendendo que tua vida seria honrar minha vontade, e viesses a mim em prece apenas para agradecer e pedir forças para estar em pé para tudo mais que pudesse vir a arrebatar-te, assim como a tua casa.
- Tu serias aquele que provaria a perfeição da criação e da justiça divina, e como és livre para escolher teu caminho, escolheria sempre aquele que provaria tua fé e confiança em mim, teu senhor e teu abrigo.
- Estava eu, certo de que cada dor quem enfrentasse o deixaria mais forte e purificaria tua alma se pudesse ser posta a prova toda tua confiança em mim, teu Senhor.
- Diz-me à razão de ter escolhido o caminho escuro e ter transformado-se nesse homem odioso que és agora.
Khalamadeu ouvia tudo e fitava aquele Homem que dizia ser Deus, e por alguma razão, disso ele tinha certeza.
Sabia que aquele era o tão nobre Senhor de Tudo e lágrimas corriam dos seus olhos enquanto vinha em seu pensamento toda a sua vida, e aquele momento que esteve perante o homem que lhe falava parecia não ter fim, tanto quanto nem se dava conta de quanto tempo havia passado.
Tal como saísse de um transe, tomou consciência e assumiu que era sua vez de tomar a palavra, e não sabia o que deveria ser dito, embora tivesse ensaiando em seus pensamentos um momento como esse durante muito tempo.
Precisava pensar, mas não havia tempo.
Decidiu assim, deixar as os sentimentos e reflexões falarem por si, pois assim diria o que vinha do âmago e apenas dessa maneira seria puro e verdadeiro em sua palestra perante o Deus que estava em carne de homem bem a sua frente.
Assim, pôs-se a dar vazão às palavras que lhe vinham da alma.
- Se és meu criador, tudo que sou e que pude ver, sentir e tocar são graças tuas.
- A vida que tive até hoje devo a ti, bem como minha própria consciência acerca de tudo que existe e acerca de mim mesmo perante a toda criação que pude vislumbrar nesse tempo que estive aqui.
- Sendo assim estou inclinado a pensar que devo ser grato, mesmo que eu não tenha escolhido estar vivo, pois certamente seria impossível uma vez que para escolher teria que antes, existir.
- Digo-te também que se imaginavas tornar-me melhor com tua mão dificultando meu caminho, equivocou-se ao menos ao meu respeito.
- Se fosse outro homem por ti escolhido, talvez atenderia este, tua expectativa, mas sobre mim creio que enganou-se.
- Eu era bom. Pelo menos aos olhos do que todos e tu mesmo pensas sobre bondade.
- Mas os espinhos que me perfuraram causaram muita dor e sim, hoje sou mais forte.
- Mas as cicatrizem ainda doem, e sangram.
- E as dores que senti moldaram-me e hoje sou pior, muito pior e ficarei ainda mais. Certamente serei um monstro mais terrível à medida que eu encontre pedras e pragas em minha existência.
Uma pausa em sua fala fez Deus absorver tudo que estava ouvindo daquele homem que agora parecia uma criatura que transparecia sabedoria.
Khalamadeu continuou...
- Agora posso dizer que percebido tudo isto, logicamente entendo que o meu Pensar é obra tua também. E isto me faz perceber a mim mesmo e perceber o mundo de maneira única.
- E o que posso dizer sobre o que sinto nesse momento, sendo verdadeiro como imagino que queiras que eu seja para contigo, digo que sinto dor.
- Sinto dor e ódio, e vazio.
- Sinto mais coisas que não sei palavras que definam, mas não me fazem bem, e me atormentam desde o momento em que duvidei de Ti Meu Deus.
- Se eu pudesse atiraria em ti todas as pedras que encontrei.
- Apenas o fato de saber que tu existes, me faz calar um pouco das vozes que clamam por respostas, e apenas uma certeza toma forma agora: Tu és culpado e responsável por mim e por toda tua obra.
- És tu criador, responsável por tua criatura.
- E meu próprio discernimento e capacidade de pensar, obra tua que toma vida em mim, faz-me voltar conscientemente contra ti, Ó Deus cruel.
- Se a cria volta contra o criador, o que podes concluir meu Pai, sobre a perfeição que imaginava ser tua obra?
- O que dirias sobre tu mesmo? Poderia um ser perfeito criar algo imperfeito?
***
Deus virou às costas por um tempo, como se pusesse a refletir e ao voltar os olhos para Khalamadeu, disse suavemente:
- Quando percebi que não estavas agindo tal como eu esperava que fizesses, pensei ter feito a escolha errada ao ser você meu filho a carregar o fardo cujo peso eu mesmo dosei.
- Agora reconheço em ti a única escolha que poderia mostrar-me a verdade.
- Vá e viva agora, conforme tua obra.
- Olharei dos céus ainda, o teu caminho, mas não porei minhas mãos em tua vida.
- Espero-te para que em algum tempo estejas comigo
- Adeus, meu filho,
Com o vento que movimentava as árvores o Senhor de Tudo se foi e uma chuva leve começou a cair.
Khalamadeu ficou um tempo ali e ajoelhou-se, mas não para rezar e sim para tocar a terra e apanhar o punhal que caíra antes, e apesar de não sentir mais tanto ódio, decidiu levá-lo consigo.
Nos céus, todos os deuses e anjos que aguardavam o Grande Rei, puderam apenas ouvir, e nada ver, como se fosse uma voz que viesse de si mesmos onde em uníssono, repetiram o que a voz proclamava:
- Nada fazeis na terra para intervir entre homens, senão por seus merecimentos.
- Cuidai para que tudo aconteça como deve acontecer e observai, dando a cada homem conforme aquilo que fizerem, seja bem ou mal, mas que seja verdadeiro.
Deus transformou-se em energia universal e uniu-se ao cosmo infinito.
O Anjo de asas escuras que acordou o fantasma das dúvidas no próprio criador nunca mais foi visto nos Céus.
Fim.
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